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A origem do carnaval  

A vida humana está associada a fenômenos astronômicos e a ciclos naturais, tais como o ano e o dia que permitiram a elaboração dos calendários civis e religiosos, onde as grandes festas universais, como a Páscoa, o Natal etc., constituem lembranças astronômicas de grande importância histórica e econômica para a época em que foram instituídas. Muitas dessas tradições de origem pagã foram absorvidas pelas religiões atuais do mundo ocidental. A grande maioria dos foliões do nosso carnaval, ao se divertir, não sabe que estará inconscientemente fazendo apelo a uma reminiscência astronômica de origem solar.

De fato, na Antigüidade a importância dos astros era enorme na vida econômica e social. Como não possuíssem um calendário preciso que lhes permitissem prever com segurança a ocorrência do início das estações e, portanto, a época da semeadura e colheita -- eram os povos primitivos, em especial os camponeses, obrigados a observar o céu. Em função de determinadas estrelas muito brilhantes, sabiam com antecedência quando iria ocorrer a chegada da primavera, do verão, do outono e do inverno.

Por outro lado, a observação astronômica, além de ser motivada pela sua principal atividade econômica -- a agricultura --, era estimulada também pela ausência de luz nas grandes metrópoles da época, o que facilitava muito a observação dos astros. Com efeito, a feérica iluminação das grandes cidades modernas tem afastado o antigo hábito de observação do céu. Assim, ofuscados pelas luzes, não vemos os astros, que regem a nossa vida social em virtude de toda uma série de tradições de origem astronômica que foram estabelecidas pelas civilizações que nos antecederam.

Festa de Ísis

Desde as mais recuadas eras, os diferentes povos estabeleceram algumas festas de grande alegria. Assim, encontram-se entre os egípcios as festas de Ísis – deusa antropomórfica da magia e da ressurreição --, e do Touro Ápis – deus da fecundidade e do renascimento, representado por um touro branco com um disco solar entre os chifres --; as dionisíacas – danças e festas em homenagem ao deus Dionísio --; festa em honra de Baco, deus do vinho, entre os romanos; entre os gregos; as lupercais – festas ao Luperco ou Pã, deus protetor dos pastores e dos rebanhos comemorado em 15 de fevereiro, na Roma Antiga --; e as saturnais – festas a Saturno, deus da agricultura, celebrado entre os dias 17 e 19 de dezembro, quando se comemorava a semeadura da safra, entre os romanos. Todas envolviam festins, danças e disfarces. Embora seja muito difícil caracterizar a origem verdadeira do Carnaval, parece que os nossos atuais festejos estão intimamente associados às duas últimas festas romanas.

Logo após o início do Ano Novo, os romanos, nas calendas de janeiro, comemoravam as saturnais, festas instituídas por Janus em memória do deus Saturno que, segundo a lenda, teria transmitido a arte da agricultura aos italianos. Durante as saturnais, as distinções sociais não eram levadas em consideração. Os escravos ocupavam os lugares dos seus patrões, que os serviam à mesa. Nesse período não funcionavam os tribunais e as escolas. Os julgamentos eram suspensos e os condenados não podiam ser executados. Interrompiam-se toda e qualquer hostilidade. Os escravos percorriam as ruas cantando e se divertindo na maior desordem. As casas eram lavadas e purificadas. As pessoas de um certo nível social preferiam se retirar para o campo, durante as saturnais, o que permitia ao povo celebrar com maior alegria esse período de liberdade.

Numa seqüência lógica aos excessos libertários, os romanos procediam à sua purificação pelas comemorações das lupercais, festas celebradas em 15 de fevereiro, em homenagem ao deus Pã, matador da loba que aleitara os irmãos Rômulo e Remo, fundadores de Roma segundo a lenda.

Princípio da fecundidade

Nesses festejos celebrava-se o princípio da fecundidade. Durante as comemorações das lupercais, untados em sangue de cabra e lavados com leite, os lupercos nus, com uma pele de um bode sobre os ombros, saíam pelas ruas batendo nos pedestres com uma correia de couro. As mulheres grávidas saíam às ruas e se ofereciam aos golpes das correias na esperança de escaparem às dores do parto. Por outro lado, as mulheres com desejo de possuírem um filho também procuravam ser atingidas pelas correias dos lupercos na esperança de virem a engravidar.

Como todos esses festejos, que consistiam essencialmente em mascaradas, disfarces e danças, já estivessem de tal modo implantados nos costumes quando do aparecimento do cristianismo, a Igreja só teve uma saída: adotou-os e, ao mesmo tempo, procurou santificá-los.

De fato, o Carnaval parece ter tido origem nessas antiquíssimas comemorações pagãs, em geral de grande alegria e liberalidade, que eram celebradas durante a passagem do ano e com o objetivo de anunciar a próxima chegada da primavera. Com efeito, o atual carnaval era o tempo de regozijo, que ia desde a Epifania (6 de janeiro). até a quarta-feira de Cinzas. Com o tempo, essa festa acabou limitada aos últimos dias que antecediam o início da Quaresma, período de 40 dias que vai da quarta-feira de Cinzas até o domingo de Páscoa, e durante os quais os católicos e ortodoxos fazem sua penitência.

O período carnavalesco variou e ainda varia segundo as tradições de cada país. Assim, parece que ele se iniciava primitivamente na Idade Média em 25 de dezembro, incluindo a festa de Natal, o dia do Ano Novo e a Epifania. Mais tarde, passou a ser comemorado desde o dia de Reis até um dia antes das Cinzas. Em alguns lugares da Espanha, sua comemoração inclui também a quarta-feira de Cinzas. Em alguns países só se comemora na terça-feira, ao passo que no Brasil é festejado no sábado, domingo, segunda e terça-feira.

Esses festejos de janeiro e fevereiro, ligados às antigas festas pagãs de abertura do ano, estão associados, como já demonstraram os peritos em folclore cristão. Não eram simples rituais desprovidos de significações mais profundas, como se podia supor inicialmente. Na realidade essas festas populares cíclicas dos países cristãos, que serviam para abrir o ano e anunciar a vinda da primavera, estão todas elas intimamente associadas ao fenômeno astronômico do solstício de inverno no hemisfério Norte, de onde surgiram todas essas práticas.

Igrejas

As igrejas católica e ortodoxa herdaram tais festas ou rituais do mundo greco-romano, que, por seu lado, as teria recebido do Oriente. Assim, na realidade, todos os festejos cíclicos, tais como o próprio carnaval, estariam associados aos antigos rituais pagãos referentes às mudanças de estação, quando então se adoravam os deuses naturais da fecundidade, do crescimento, da colheita e da abundância, praticando-se penitências ou até mesmo o sacrifício de seres vivos. Essas festas continuaram tradicionalmente a ser respeitadas mesmo nas regiões que não apresentam as mesmas mudanças meteorológicas. Assim, as festas do carnaval comemoradas durante o inverno no hemisfério Norte são celebradas, no hemisfério Sul, em pleno verão.

Micareta, o carnaval alternativo

Nos primeiros decênios do século XX, o jornalista Francisco Guimarães – o conhecido Vagalume --, percebendo que o sábado de Aleluia se distanciava muito do período carnavalesco, introduziu no Rio de Janeiro a Mi-Carême (Meia Quaresma), importada da França. Essa festa parisiense foi comemorada no Rio, nos anos de 1920 até 1922, anualmente.

O vocábulo Mi-Carême foi abrasileirado em Micareta ou Micarema, cuja comemoração é muito comum nas cidades do nordeste, principalmente em Feira de Santana. De fato, nessa cidade baiana, comemora-se a Micareta, anualmente, na quinta-feira da terceira semana da Quaresma. Ao contrário, do que ocorreu no Rio, a festa carnavalesca realiza-se 15 dias após a Páscoa. Ela surgiu, em Feira de Santana, em 1937, quando choveu muito durante o período do Carnaval e foi decidido que a festa de Momo fosse transferida para o mês de maio daquele mesmo ano. Em virtude do grande sucesso é habito até hoje, em Feira de Santana, comemorar um segundo carnaval também após a Páscoa.

Conclusão

Finalmente, convém lembrar este texto pouco conhecido de Albert Einstein:

“Os homens não vivem só de pão. É possível que as pessoas não versadas nas ciências atinjam uma parcela da beleza e virtudes inerentes ao pensamento, com a condição de que este pensamento lhes seja tornado assimilável. Não devemos exigir que a ciência nos revele a verdade. Num sentido corrente, a verdade é uma concepção muito vasta e indefinida. Devemos compreender que só podemos visar à descoberta de realidades relativas. Além disso, no pensamento cientifico existe sempre um elemento poético. A compreensão de uma ciência, assim como apreciar uma boa música, requer em certa medida processos mentais idênticos. A vulgarização da ciência é de grande importância, se proceder duma boa fonte. Ao procurar-se simplificar as coisas não se deve deformá-las. A vulgarização tem de ser fiel ao pensamento inicial.”

A leitura desse pensamento seria suficiente para eliminar um pouco a incompreensão da importância da divulgação científica, mas Einstein continua:

“A ciência não pode, é evidente, significar o mesmo para toda a gente. Para nos, a ciência é em si mesma um fim, pois os homens de ciência são espíritos inquisidores. Mas não devemos esperar que todos comunguem das nossas concepções, e assim os profanos em matéria de ciência devem constituir objeto de uma especial consideração. A sociedade torna possível o trabalho dos sábios, alimenta-os. Tem o direito, portanto, de lhes pedir por seu lado uma alimentação digestiva.”

Assim como Einstein acreditou que a sociedade pede aos que guardam segredos a sete chaves, sejam científicos ou de natureza política, que liberem-na de uma forma algo bem digestível.

Bibliografia

Albin, Ricardo Cravo. O Livro de Ouro da MPB, Ediouro, Rio de Janeiro, 2003.
---. Tons e Sons do Rio de Janeiro de São Sebastião, Instituto Cravo Albin, Rio de Janeiro, 2005.
---. Dicionário Houaiss Ilustrado – Música Popular Brasileira, Paracatu Editora, Rio de Janeiro, 2006.
Araújo, Hiram (coordenador). Memória do Carnaval, Oficina do Livro, Rio de Janeiro, 1991
Maximo, João e Didier, Carlos. Noel Rosa, uma biografia, Editora UnB, Brasília, 1990.
Mourão, Ronaldo Rogério de Freitas. Dicionário Enciclopédico de Astronomia e Astronáutica, 2ª edição revista e ampliada, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1996.
---. Que dia é hoje?, Unisinos, São Leopoldo, RS, 2003.
---. O livro de ouro do universo, 7ª edição, Ediouro, Rio de Janeiro, 2005.

Por Ronaldo Rogério de Freitas Mourão - Astrônomo, criador e primeiro diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins.

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